“Viagem”, enquanto metáfora do nosso percurso de vida, está presente no nosso quotidiano e na literatura.
Em escritores como José Saramago ou Sophia de Mello Breyner.
O conto “A Viagem”, de Sophia, atravessa a minha vida desde a adolescência.
Marcou-me quando tinha 15 anos e cada vez faz mais sentido.
Um casal viaja, incessantemente, à procura de um local ideal de que tem um conhecimento vago.
É esse local que os orienta, mas também é a ânsia desse lugar que os impede de desfrutar as paisagens por onde vão passando.
Soa familiar?
Os erros, as insatisfações, as desilusões, a impossibilidade de viver o dia que já passou,… e a inevitabilidade do fim estão tão presentes na “viagem” do casal protagonista que nós sofremos por eles,
sofremos com eles e sofremos sozinhos, por nós, depois de fecharmos o livro.
“- Logo que chegarmos – disse ela -, vamos tomar banho no rio.
– Tomamos banho no rio e depois deitamo-nos a descansar na relva – disse o homem, sempre com os olhos fitos na estrada.
E ela imaginou com sede a água clara e fria em roda dos seus ombros, e imaginou a relva onde se deitariam os dois, lado a lado, à sombra das folhagens e dos frutos. Ali parariam. Ali haveria tempo para poisar os olhos nas coisas. Ali haveria tempo para tocar as coisas. Ali poderiam respirar devagar o perfume das roseiras. Ali tudo seria demora e presença. Ali haveria silêncio para escutar o murmúrio claro do rio. Silêncio para dizer as graves e puras palavras pesadas de paz e de alegria. Ali nada faltaria: o desejo seria estar ali.
Através dos vidros, campos, pinhais, montes e rios fugiam para trás.
– Devemos estar a chegar à encruzilhada – disse o homem.
E seguiram.
Rios, campos, pinhais e montes. E meia hora passou.
– Já devíamos ter chegado à encruzilhada – disse o homem.
– Com certeza nos enganámos no caminho – disse a mulher.
– Não nos podemos ter enganado – disse o homem -, não havia outro caminho.
E seguiram.
– A encruzilhada já devia ter aparecido – disse o homem.
– O que é que vamos fazer? – perguntou a mulher.
– Seguir em frente.
– Mas estamos a perder-nos.
– Não vejo outro caminho – disse o homem.
E seguiram. […]
– Estamos a perder-nos cada vez mais – disse a mulher.
– Mas onde há outro caminho? – perguntou o homem.”
Excerto do conto, inserido no livro Contos Exemplares.
Imagens de Sophia espalhadas pela net.
10 de Outubro de 2015 às 21:31
a encruzilhada, essa, é que atrapalha o seguir em frente! Ou talvez não, talvez, seja ela a permitir mudança de rumo, encontrar novos horizontes.
Bom fim de semana!
10 de Outubro de 2015 às 21:34
É muito verdade: depende da nossa atitude perante a encruzilhada… e do tipo de encruzilhada!
Bom fim de semana, Mia!
10 de Outubro de 2015 às 23:35
Gostei muito de o ler há uns bons anos, daqueles contos que nos desorientam o pensamento. Acho que vou reler e ver o que sinto após tanto tempo. 😉 ( Ana, assim como eu, as miúdas adoraram o Totoro, em especial a Mariana, a minha filha mais velha. É muito bonito). Beijo e bom fim de semana.
10 de Outubro de 2015 às 23:46
Há contos que vão fazendo cada vez mais sentido: comigo aconteceu!
Ver o Totoro num dia de chuva é mesmo perfeito!
Bom fim-de-semana!
12 de Outubro de 2015 às 17:57
A literatura e mesmo fascinante. Comigo e Jane Austen que me acompanha, desde os nove anos. Já li orgulho e preconceito dúzias de vezes. rs
12 de Outubro de 2015 às 22:59
Há escritores que nos acompanham ao longo da vida e que nós vamos redescobrindo a cada década que vivemos!
13 de Outubro de 2015 às 20:39
Ultimamente tento me ater ao percurso, o chegar ou não tenho deixado a segundo plano. Beijo
14 de Outubro de 2015 às 14:49
É mesmo, Helka; num mundo tão preciso, regrado e objectivado é mesmo bom partir, por vezes, sem destino!