Lancinante:
– do latim lancinans, -antis,
– particípio presente do verbo lancino, -are: despedaçar, rasgar, ferir.
– adjetivo de dois géneros.

Por vezes, os meus adolescentes confidenciam-me desgostos de amor.
Apesar da avalanche de informação a que estamos, hoje, todos sujeitos, o analfabetismo afectivo é transversal a todas as gerações.
De qualquer forma, gerir emoções aos 16 anos é, sem dúvida, avassalador.
Eu não sou sábia, mas vivo com o coração, leio, ouço e quero-lhes bem. Talvez eles intuam isso.
Invariavelmente, os que me procuram são os elos mais frágeis da relação: estão em crise e toleram da outra parte um desamor que já não é aceitável.
Ouço-os, agradeço-lhes o voto de confiança e peço-lhes para, durante a vida, não permitirem ser rejeitados duas vezes pela mesma pessoa. Se o outro nos diz “não” (ou demonstra esta rejeição através de actos) é a “deixa” para abandonarmos aquele palco. Dilacerados… mas é o momento de sairmos.
Ter a capacidade de amar parece-lhes, nestas alturas, uma maldição, mas asseguro-lhes que é um privilégio de poucos. “Mutilado” é o adjetivo que define o ser humano que nunca amou ridiculamente ou nunca chorou por alguém.
Confirmo-lhes que ser abandonado provoca dores lancinantes; dores que nos trespassam o corpo e nos despedaçam em farrapos de despeito, rancor, incompreensão, revolta, fel e vertigem.
A cultura trágico-amorosa que nos envolve, quer nos noticiários, filmes, séries, músicas, quer na literatura, continua a deformar-nos diariamente.
Infelizmente, o culto de aceitar o sofrimento e a humilhação como uma fatalidade amorosa está longe de ser varrida do discurso que nos rodeia.
A literatura também mina um coração fragilizado.
Quer aos 15, quer aos 50 anos, há poucos poemas que ajudem a sobreviver ao ferimento com dignidade. São até perigosos os poemas que cantam a rejeição: alimentam esperanças, vinganças, autocomiserações e fantasias.
Há, de facto, poucas ajudas para encarar esta inevitabilidade da vida:
vamos cruzar-nos com pessoas incríveis e outras que nem por isso. As “nem por isso” é preferível que nos deixem depressa. Também vamos encontrar pessoas apaixonantes e outras apaixonadas (por nós). Estas pessoas, desafortunadamente, nem sempre vão coincidir aos nossos olhos. Forçar só vai trazer sofrimento.
É assim o mistério da Vida. Temos encontros e desencontros e, geralmente, aprendemos sempre. Muitas vezes, aprendemos a não repetir o erro. Já não é pouco.
Se tudo correr bem, a partir dos 40 anos, a nossa autoestima e amadurecimento ajudar-nos-ão a aguentar o embate. Triste consolo para quem tem 16 anos. Nunca o refiro ou corro o risco de parecer uma anciã.

José Carlos Barros é dos poucos poetas que pode ajudar, nestas desditosas situações.
Nasceu, em Boticas, em 1963.
Escreveu o poema que devemos declamar 100 vezes, no silêncio e solidão da ressaca, quando, literalmente, acabam connosco.
Depois da declamação, como sabemos, é aguentar.
Ter um coração que sente tem reveses, mas viver sem o sentir é pior.
Chorar copiosamente durante 10 dias também ajuda.
Ou apagar o número do telemóvel, respeitar o necessário distanciamento higiénico e fazer o luto. É um processo lento e querer apressá-lo é um sintoma de uma sociedade doente que não nos dá tempo e dissimula o sofrimento e a morte.

NÃO INVENTES
Não venhas cá com merdas. Não inventes.
Não olhes nos meus olhos. Sai apenas.
E poupa-me aos discursos eloquentes
e às farsas do adeus. Não faças cenas.
Não digas que lamentas ou que a vida
às vezes é assim: que tudo esquece;
que o mundo e o tempo curam qualquer ferida.
Repito, meu amor: desaparece.
E leva o que quiseres de tudo quanto
um dia suspeitámos partilhar:
os livros, as esculturas em pau-santo,
os discos, os retratos, o bilhar.
Não deixes endereços. Por favor:
eu quero é que te fodas, meu amor.
José Carlos Barros, in O Uso dos Venenos, ed. Língua Morta
Fotografias de Charlotte Lapalus, descoberta no site IGNANT.
Nota: escrevi este texto antes do que aconteceu à Beatriz Lebre. Tive o privilégio de receber o seu sorriso, durante vários meses, nas minhas aulas. Fiquei incrédula, revoltada, e em choque com o que lhe aconteceu.
Hesitei, sem saber se deveria publicar o que escrevi há um mês. Optei por avançar, porque é a altura de chamar a atenção para a necessidade de educar os nossos jovens para a gestão dos afectos. Não chega conversarem com uma professora bem intencionada. Falta um trabalho de fundo.
Como sabemos, sem meios nada é possível. Continuamos com um psicólogo para centenas de alunos. Pensar que, nestas condições, se faz alguma coisa é uma ingenuidade ou uma perversidade. Há que investir seriamente na formação emocional dos jovens. Só profissionais qualificados podem formar crianças e diagnosticar possíveis patologias.
Hoje, como sabemos, já é tarde para corrigir esta lacuna!
6 de Junho de 2020 às 21:32
Oh, minha cara… uma amiga me falou a respeito do caso. Nossa, que tempos são esses? Não temos paz. É uma notícia e outra e mais outra. Mas, está certa, é preciso aprender a lidar com os afetos. Algo que aparentemente não está sendo feito por aqui. Não passa um único dia sem que sejamos assombrados por brutalidades iguais a esta. Pior, aqui se paga uma soma e se culpa a vítima.
um bom final de semana
fique bem
8 de Junho de 2020 às 17:05
Lunna, estas notícias retiram-me a fé no mundo.
Quando acontecem com pessoas próximas e vitimam seres maravilhosos, o luto é ainda mais duro.
Há muito trabalho a fazer no âmbito da educação e saúde mental. Muito preconceito também.
Precisamos muito de psicólogos e psiquiatras nas escolas e a trabalhar com as famílias.
Boa semana, Lunna!
Bacio!