O livro Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago nunca foi tão actual.
Resumidamente, relata-nos o horror de uma cidade assolada por casos de cegueira inesperada e contagiosa.
Dado o nosso contexto desde Março, facilmente a intriga se tornou tristemente verosímil. Ao lermos o livro, partilhamos o medo que se apodera dos habitantes, as precipitações políticas, a perda de direitos fundamentais e o caos que se instala. Temos de lhes juntar uma componente extra de terror, pânico e fome.
Por outras palavras, o livro relata uma Covid-19 hiperbolizada.
Torna-se chocante assistirmos à degradação total da condição humana. Fica provado que, perante a escassez de alimentos e o caos, é muito fácil perdermos a nossa humanidade. Demasiado fácil.
No livro, a cegueira que atinge as personagens é, obviamente, uma metáfora que vai sendo descodificada ao longo da acção e que se torna clara na última página:
“Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer
a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, penso
que estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem.”
O livro termina com a misteriosa frase:
“A cidade ainda ali estava”.
Na altura, não percebi esta frase que encerra a obra, mas Saramago, nesta entrevista a Ana Sousa Dias, explica-a:
A cidade continua presente e expectante, em pausa.
Mas será que os homens, depois da “cegueira física” ser curada, voltam mais sábios? Será que se questionam sobre a forma como estavam organizados,?Será que vão alterar alguma coisa?
Neste momento que nós vivemos, é mesmo esta a questão: o mundo paralisou de medo e por decreto. Aos poucos, regressámos e parece que o pior já passou, mas será que aprendemos alguma coisa?
Ingenuamente, em Abril e Maio, pensei que sim, mas sinto que nos perdemos desse rumo mais generoso: estamos tensos, pouco empáticos e muito auto-centrados… como sempre fomos.
Acredito que a nossa vida é construída de detalhes que se acumulam e não tanto de grandes gestos. Há novos pormenores do nosso quotidiano que estão a marcar-nos. O distanciamento, a ausência da pele e do calor do outro é um deles, mas a máscara também está a deixar consequências.
O uso constante da máscara pode proteger-nos, mas retira-nos a individualidade e cega-nos.
Somos, agora, seres que se cruzam mas não se reconhecem.
Somos casos de que os jornalistas, à noite, falam, mas perdemos a identidade. A identidade é o que nos resta quando tudo se dissipa.
Aprendemos, desde bebés, a reconhecer o outro através da face. Se esta é engolida por uma máscara, ignoramo-lo e desprezamos, inconscientemente, a sua peculiaridade, necessidades e emoções.
Toda a situação pandémica está a ganhar novos contornos bizarros e cruéis de filme de segunda categoria.
Mais uma vez, talvez nos salve a literatura.
Como nos diz Saramago,
“A cidade/ o mundo ainda ali está.”
E, nós, que fazemos?