Com a idade fui ficando mais susceptível:
um filme dramático pode arrasar o meu ânimo,
uma criança atriz arrasta-me num pranto e um policial sangrento angustia-me.
Pelo mesmo motivo, reportagens e documentários têm de ser tomados em doses homeopáticas.
O reverso dessa sensibilidade crescente é que um sorriso, um abraço, uma música, um verso ou um livro são igualmente poderosos.
O livro O Infinito num Junco, de Irene Vallejo, teve um efeito terapêutico, numa fase mais descrente que eu atravessava.
Ler acerca da invenção do objeto infinito e salvador que é o livro restitui-me alguma fé na humanidade.

Neste pequeno vídeo, a autora revela a sua grande surpresa: depois da longa investigação que fez, ficou admirada com o papel desempenhado pelas mulheres no processo da criação da literatura. Constantemente silenciadas, elas foram, todavia, as primeiras narradoras da História (não obstante todos os obstáculos físicos e sociais edificados à sua volta).
Ninguém registou, mas por milénios foram elas que contaram histórias aos filhos e aos familiares, enquanto cos/ziam, tratavam dos bebés ou limpavam a casa.
A comprovar este papel ignorado, Irene Vallejo realça o facto de haver tantos vocábulos em comum entre os textos e os têxteis:
- o fio da narrativa, o novelo da história, a trama, a urdidura da história, o desenlace da ação, entremear o discurso ou urdir um trama.
Pergunta Irene: “O que é para nós um texto a não ser um conjunto de fios verbais atados?”
Nunca tinha pensado nestas coincidências vocabulares e considero este levantamento de expressões deveras intrigante. Na verdade, tendo as mulheres diferenças estruturais no cérebro relacionadas com a sua extraordinária competência linguística, tal facto nem deveria surpreender-me.
No entanto, como, ao longo dos últimos séculos, aprendemos a valorizar apenas o que está escrito, esse papel literário da mulher esfumou-se. Evidentemente, nesse mundo misógino da escrita, as mulheres foram, durante muitos séculos, impedidas de entrar.
Felizmente, a literatura oral é perseverante e, muito antes do registo escrito, reinou um poderoso património de partilha de experiências, das mais fantásticas ficções e emoções (vividas ou sonhadas) que nos cinzelou, sem dúvida, enquanto humanidade.
As autoras desse fabuloso império foram, sem dúvida, as mães e avós da História.
Outro facto que me deixou completamente estupefacta é que, apesar das restrições, “o primeiro autor do mundo que assina um texto com o próprio nome é uma mulher.
Mil e quinhentos anos antes de Homero, Enheduana, poeta e sacerdotisa, escreveu um conjunto de hinos cujos ecos ainda se ouvem nos salmos da Bíblia. Rubricou-os com orgulho. Era filha do rei Sargão da Acádia, que unificou a Mesopotâmia central e meridional num grande império[…] Também são suas as mais antigas notações astronómicas. Poderosa e audaciosa, atreveu-se a participar na agitada luta política da sua época, e por isso sofreu o castigo do exílio e a sua nostalgia.”
♥
A propósito de sensibilidades, há um programa protector de almas vulneráveis imperdível na RTP2: “Volta ao Mundo em Cem Livros”, de Alexandra Lucas Coelho.
No primeiro episódio, a voz serena de Alexandra fala de quem?
Precisamente de Enheduana.
https://www.rtp.pt/play/p9507/e579261/volta-ao-mundo-em-cem-livros
Por vezes, o Universo alinha-se de forma a mostrar-nos do que somos capazes!
Enquanto mulheres e enquanto Humanidade!