“de noite, a maria da graça sonhava que às portas
do céu se vendiam souvenirs da vida na terra. gente de
palavras garridas que chamava a sua atenção com os bra-
ços no ar, como quem tinha peixe fresco, juntava-se em
redor da sua alma e despachava por bagatelas as coisas mais
passíveis de suprir uma grande falta aos que morriam. […]
por uma compreensível angústia, ansiedade ou frenesi de ali estar tão
pela primeira vez, mantinha a esperança de que talvez são
pedro a esclarecesse e, com um pé lá dentro e outro ainda
fora, lhe fosse possível comprar o requiem de Mozart, a
reprodução dos frescos de goya ou a edição francesa das
raparigas em flor.”
Começa desta forma insólita e surpreendente o livro de valter hugo mãe.
Com o sonho recorrente de Maria da Graça no Purgatório.
Maria da Graça e Quitéria são mulheres-a-dias e eu passei as primeiras páginas num desconforto e num preconceito superior àquele que gostaria de admitir.
Os diálogos que estas personagens travam, enquanto estendem a roupa, apesar de muito humorados, pareceram-me desinteressantes.
Foi preciso o senhor Ferreira (o patrão de Maria da Graça) morrer.
Apareceram-me, então, estas mulheres e as suas dores.
Surgiram-me lições de Humildade e de Humanidade.
Com muito humor, mas com crueza, senti a solidão, a dificuldade da Vida,
a luta do dia-a-dia de todos Nós que partilhamos a maravilha e a tortura de sermos Humanos.
E vi o que nos pode salvar:
o Amor, a Arte e as Ideias.
“[…] abraçou-se àquela mulher numa convulsão tão grata que lhe sentiu
amor como apenas aos pais sentira. um outro amor, mas
igualmente absoluto e votado à eternidade. dizia-lhe,
obrigado, quitéria, muito obrigado. e ela desfazia-se em
coração e não imaginara nunca que aquele gesto poderia
ser o mais mudador de toda a sua vida. aceitou aquele
abraço pelo lado mais interior do amor, rasgando com
o passado a costumeira ferocidade. naquele instante,
a quitéria acreditou que descobrira o mais inatingível da
existência. agarrou-se ao andriy e agradeceu-lhe como
pôde pela oportunidade única de se humanizar daquela
maneira e percebeu a inteligência mais secreta de todas.
esta é a inteligência mais secreta de todas, o amor.”
Já gostava de ouvir vhm; sinto-me tocada pelas suas palavras – precisas, nuas, verdadeiras.
Senti o mesmo ao ler este livro.
“[…] quando bebeu o primeiro gole de vinho julgou
que a vida, se fosse justa, poderia ser feita daquilo e de
mais nada. ao inventar as coisas, quem inventara, deveria
ter-se ficado por aquilo, um vinho, uma amizade sincera,
o calor magnífico do fim da tarde, a paisagem mais bela
de todas. era tão fácil inventar só aquilo e com aquilo
garantir com segurança que as pessoas do mundo inteiro
seriam felizes.”
A última imagem é do blog de Mimi Thorisson.