Finalmente, estamos a recuperar o espaço público.
Que bom que é ver os outros, sentir, cheirar, tocar, concordar, discordar, intervir, ouvir, observar, seguir, calar, e guardar tudo no fim.
Sempre precisei de silêncio e solidão e não tinha consciência de que me fazia falta a sensação de “fazer parte de”.
Basta sair de casa, observar ou ouvir uma conversa para que os outros me acrescentem.
Integro ou rejeito a diferença, mas reflito e cresço.
Talvez o sentido de comunidade também se desenvolva assim e nem precise de intervenções públicas estrepitosas.
Perante a forçada ausência do novo, devo uma parte da minha sanidade mental aos podcasts que fui/vou ouvindo, nomeadamente “O Poema ensina a Cair”, da autoria de Raquel Marinho.
Um dos últimos que ouvi teve como convidado Vicente Alves do Ó. Foram duas horas de conversa que me acompanharam e acenderam vários dias. Para além da obra, o realizador é um excelente contador de histórias e, através dele, conheci a poeta Cláudia R. Sampaio.
As redes sociais são enjoativas, mas gosto da ideia de comunidade virtual: ao longo destes meses, fui reunindo à minha volta vários nomes que me preenchem, de forma sublime, o pensamento.
Este poema da Cláudia R. Sampaio ainda me ilumina os dias.

Tragam-me um homem que me levante
com os olhos
que em mim deposite o fim da tragédia
com a graça de um balão acabado de encher
tragam-me um homem que venha em baldes,
solto e líquido para se misturar em mim
com a fé nupcial de rapaz prometido a despir-se
leve, leve, um principiante de pássaro
tragam-me um homem que me ame em círculos
que me ame em medos, que me ame em risos
que me ame em autocarros de roda no precipício
e me devolva as olheiras em gratidão de
estarmos vivos
um homem homem, um homem criança
um homem mulher
um homem florido de noites nos cabelos
um homem aquático em lume e inteiro
um homem casa, um homem inverno
um homem com boca de crepúsculo inclinado
de coração prefácio à espera de ser escrito
tragam-me um homem que me queira em mim
que eu erga em hemisférios e espalhe e cante
um homem mundo onde me possa perder
e que dedo a dedo me tire as farpas dos olhos
atirando-me à ilusão de sermos duas
novíssimas nuvens em pé.
in Ver no Escuro, Tinta da China.

O fotógrafo Vitorino Coragem tirou estas fotografias à poeta e eu trouxe-as daqui.